LANÇAMENTOs Em destaque, novos álbuns de artistas
da free music vindos de diferentes partes do globo... Ouça, divulgue,
compre discos...
Por Fabricio Vieira
Quelques idées d’un vert incolore...
Toc & Jean-Luc Guionnet
Circum-Disc
Nos muitos discos do universo free impro que surgem
diariamente (sim, diariamente!), fica uma impressão vaga, para quem vai ouvindo
parte significativa deles, de que falta uma energia mais espraiada, aquela
explosão corrosiva que fez muito da fama do free jazz desde seus primórdios.
Por isso, enche os ouvidos e sentidos quando damos play em um disco como este.
Quelques
idées d’un vert incolore dormente furieusement... registra um encontro entre o
Toc,
trio de Lille formado há uns 15 anos por Jérémie Ternoy (Fender Rhodes, piano bass),
Ivann Cruz (guitarra) e Peter Orins (bateria), e o veterano saxofonista de Lyon
Jean-
Luc Guionnet. Gravado ao vivo no Malterie, em Lille, em março de 2024, o
disco traz a apresentação de 33 minutos ininterruptos realizada naquela noite.
A guitarra saturada, o sax cortante, o pulso percussivo contínuo, tudo aqui soa
bem integrado para criar uma sonoridade de energia elevadíssima. Editado em CD
e digital.
Insect Life
Insect Life
577 Records
Este novo grupo de experimentados artistas apresenta uma
música realmente estimulante.
Insect Life é um quarteto vindo da cidade de Oakland,
Califórnia. O projeto se desenvolveu nos últimos anos a partir de sessões
colaborativas semanais na casa do clarinetista
Ben Goldberg, onde se reuniam
Raffi
Garabedian (sax tenor),
Danny Lubin-Laden (trombone) e
Ben Davis (violoncelo).
Quando resolveram registrar no Opus Studios, em Berkeley, em maio de 2023, a
sessão que resultou neste álbum, convidaram para se juntar a eles o baterista
Gerald
Cleaver, formando este quinteto que agora ouvimos. O resultado são 16 peças,
todas chamadas de “Scene”, que funcionam como um conjunto uno, com algumas faixas
mais breves (menos de um minuto) exercendo a função de intermezzos e transições.
A música acústica sofre rupturas nas quatro peças que trazem a marca “ZJW Remix”,
sendo estas retrabalhadas por Zachary James Watkins (loops, processing),
criando outras atmosferas. Insect Life saiu no começo de novembro e me parece
que tem recebido pouca atenção da crítica, uma injustiça, pois trata-se de um
álbum realmente excitante e criativo. Publicado em digital e edição limita (100
cópias) em CD.
Algol
Ángeles/ Stemeseder/ Lillinger
Buh Records
Algol é um novo trio que reúne o genial baterista e
compositor alemão
Christian Lillinger, o flaustista peruano
Camilo Ángeles e o
pianista austríaco
Elias Stemeseder. O Algol, que acaba de lançar este seu
disco de estreia, apresenta um free impro permeado de elementos eletroacústicos
(todos os três também tocam eletrônicos e sintetizadores). O projeto nasceu no
começo de 2024, quando os três músicos se reuniram no México para apresentações
e uma sessão de estúdio (que agora podemos ouvir). “
Concebido como un sistema
abierto de construcción sonora en tiempo real, Algol opera en el punto de
convergencia entre la composición, la improvisación y la experimentación electroacústica”, diz a apresentação do disco. São quatro peças, que variam de 6
a 11 minutos. Em paralelo ao lançamento do álbum (que sai em edição limitada em
LP e digital), o trio saiu em tour pela América Latina, vindo ao Brasil como
parte do festival Novas Frequências.
Ars Ludicra
Peter Evans Being & Becoming
More is More
Being & Becoming, o quarteto capitaneado pelo trompetista
Peter Evans, lança seu terceiro álbum oferecendo uma música com muitas
novidades sonoras. Quem se deliciou com os registros anteriores do grupo
encontrará aqui elementos reconhecíveis, mas as fronteiras se abriram
indiscutivelmente. Evans (trompete, piccolo, flugelhorn, eletrônicos, piano)
está aqui acompanhado por Joel Ross (vibrafone, synth), Nick Jozwiak (baixo) e Michael
Shekwoaga Ode (bateria). Registrado em março de 2024 no mítico Van Gelder
Studio,
Ars Ludicra foi pensado para o formato LP, trazendo cinco peças e pouco
mais de 30 minutos de música. O disco abre com a explosiva e desconcertante “Malibu”,
com linhas quebradiças pulsantes da bateria e solos precisos de trompete e
vibrafone. “Pulsar” se revela mais complexa em sua estrutura, com diferentes
viradas climáticas e um desfecho arrebatador. Na sequência, “Hank’s” traz um
faiscante piccolo trumpet, enquanto vibrafone e sintetizador criam estranhos
climas. Mas mudança mesmo vem no lado B do disco. A começa com “My Sorrow is
Luminous”, uma inusitada releitura de uma canção da cantora russa folk-punk Yanka
Dyagileva (1966-1991), mais melódica e compassada,
arranged and expanded to
symphonic proportions, diz o encarte. O álbum fecha com “Images”, que traz uma
convidada, a flautista Alice Teyssier. Não sei como a peça soa a ouvidos
estrangeiros, mas há algo aqui que parece meio deslocado do álbum – vale citar que
a faixa é descrita como tendo
orchestral Brazilian-influenced textures, seja lá
o que isso signifique. Publicado em edição limitada em LP e digital.
Shishiodoshi
Kaze & Koichi Makigami
Circum-Disc/Libra
O quarteto
Kaze foi criado em 2010 unindo duas linhagens do
free impro: de um lado, os japoneses
Satoko Fujii (piano) e
Natsuki Tamura
(trompete); do outro, os franceses
Christian Pruvost (trompete) e
Peter Orins
(bateria). Este equilíbrio de forças expressivas é sensivelmente quebrado aqui
com a entrada em cena de um convidado:
Koichi Makigami. O artista japonês, na
estrada desde a década de 1970, é, antes de mais nada, um performer (ou seja,
este quinteto só exibe seu todo no palco mesmo). Ator, vocalista, improvisador,
flautista, poeta, Koichi Makigami tem em seu currículo parcerias com muita
gente da música experimental, de John Zorn e Meredith Monk a Derek Bailey e Lauren
Newton. Esta colaboração surgiu casualmente durante o festival japonês Jazz Art
Sengawa, no qual Koichi atua como diretor artístico e o Kaze ia se apresentar. Do
divertido encontro veio a ideia de fazerem mais juntos, resultando em uma
apresentação em Malterie, em Lille, em maio de 2024, que viria a ser este
disco. O centrado free impro do Kaze se choca com a irreverência de Koichi, com
seus malabarismos vocálicos não verbais, dando um verdadeiro novo rumo
expressivo ao som do quarteto, fazendo das três longas faixas do álbum um
circuito de infinitas surpresas. Editado em CD e digital.
Burning Wick
Satoko Fujii Quartet
Libra Records
A pianista japonesa
Satoko Fujii teve em 2025 mais um ano
bastante prolífico que fecha (não duvide que ela lance algo mais antes de o ano
encerrar) com o novo trabalho de seu intenso quarteto. Este grupo, formado apenas
por artistas japoneses – o trompetista Natsuki Tamura, o baixista Takeharu
Hayakawa e o baterista Tatsuya Yoshida (do cultuado duo Ruins) – começou a
tocar junto em 2001. Após uns anos de atividade, parou por mais de uma década e
meia, tendo retornado no ano passado como o forte “Dog Days of Summer”. “
I have
more fun playing with this band than ever before”, diz Fujii. “
We know each
other better, we respect each other, and we enjoy the differences between our
respective styles. We are not young anymore but we have so much fun making
music together that we feel like teenagers”, completa, resumindo bem o frescor
da música que fazem. A excelente forma da banda é novamente atestada agora com
Burning
Wick. Gravado em setembro de 2025 no Orpheus Recording Studios, em Tóquio, o
álbum traz 7 novas peças de Fujii. As faixas se desvelam como composições
mesmo, apesar da linhagem improvisatória dos membros do quarteto. A intensidade
rock da bateria de Yoshida e o marcante groove do baixo elétrico de Hayakawa
são marcas de relevo nesta música (nesse sentido, tem um pouco de seu melhor em
“Mountain Gnome”), formando um intenso amálgama com a voltagem free jazz do
casal Tamura-Fujii. A faixa-título, possivelmente a melhor, é uma síntese desta
fase do quarteto (o tema do piano que abre e fecha a peça é hipnótico), com
espaços generosos para todos os músicos, mas deixando Fujii mostrar bem o
porquê de ser uma das vozes pianísticas maiores de nosso tempo.
[Sama’a] (Audition)
[Ahmed]
Otoroku
Em cerca de uma década de vida, o quarteto
[Ahmed] se firmou
como uma das vozes centrais e mais poderosas do free jazz contemporâneo. A cada
lançamento seu, os ouvintes atentos a essa música correm para dar play e desfrutar
um pouco mais de momentos de energia única. O [Ahmed] fez sua (breve) história
como uma banda ao vivo, de incríveis discos sempre captados no calor do palco.
Agora eles chegam à sua estreia em estúdio para demonstrar que tudo pode seguir
em alta voltagem mesmo em um ambiente mais controlado. Gravado em fevereiro de
2025 no Fish Factory Studios, no norte de Londres, este [Sama’a] (Audition) é o
primeiro lançamento de um par de gravações realizadas ali. Tendo à frente o
pianista britânico
Pat Thomas e o saxofonista
Seymour Wright, aos quais se
juntam o contrabaixista sueco
Joel Grip e baterista francês
Antonin Gerbal,
o [Ahmed] surgiu com a missão de revisitar (ou melhor, reinventar) o universo
musical do contrabaixista e compositor Ahmed Abdul-Malik (1927-1993).
Para este novo registro, foram escolhidas as quatro peças do disco “Jazz Sahara”,
de 1959: Ya Annas [Oh, People]; Isma’a [Listen]; El Haris [Anxious]; e Farah’ Alaiyna
[Joy Upon Us]. Parte desse material já havia aparecido em registros da banda,
mas como eles desconstroem/recriam tudo em voltagens novas, ouve-se o álbum com
interesse de ineditismo inabalável. As releituras são longas, como não podiam
deixar de ser quando na mão deles, ficando uma faixa em cada face do vinil, com
as peças variando de 14 a 18 minutos. Com liner notes assinadas por Fred Moten,
[Sama’a] (Audition) sai em LP duplo e digital.
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*quem assina:
Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em
Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por
alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou
também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos
anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de
liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo
Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live
in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)