O Tarot Sonoro de Paula Shocron


LANÇAMENTOs
A pianista argentina Paula Shocron apresenta seu novo trabalho, em 22 peças que dialogam com o tarô... 


Por Fabricio Vieira  

Paula Shocron estreou duas décadas atrás, quando editou o álbum solista “La Voz Que Te Lleva” (BlueArt, 2005). Não tardou para ganhar destaque na cena jazzística argentina, se firmando como um dos nomes imperdíveis da música de seu país. A pianista de Rosario, desde então, levou sua arte também para o exterior, tendo publicado por selos de destaque do jazz livre e criativo, como o suíço Hat Hut (“Tensegridad”), o estadunidense Astral Spirits (“El Templo”) e o polonês FSR (“Diálogos”). Com uma discografia como líder e colíder que ultrapassa os 20 títulos, Shocron construiu nessas duas décadas uma obra com múltiplas visadas artísticas, de amplas expressões e resultados muito instigantes para ouvidos atentos.

A obra de Shocron é marcada por diferentes etapas, que se são complementares e reflexivas umas nas outras, poderiam ser recortadas como forma de melhor apreciarmos seu processo e transformação criativa. Em seu primeiro ciclo, que se desenvolve até “Surya” (Kuai Music, 2014), a vemos mais ligada ao universo jazzístico. No segundo ciclo, o free jazz e a improvisação livre se tornam o campo por onde sua música vai se desenvolver. É também quando sua arte ecoa mais fortemente no exterior, sendo mais acompanhada por críticos e público internacionais e tendo oportunidade de registrar parcerias com lendas como o mestre do contrabaixo William Parker. Nos últimos anos, a vimos adentrar uma terceira etapa, onde as vivências anteriores, se não abandonadas, parecem se tornar apenas mais um elemento em uma música que rompe todas as fronteiras até então testadas. Essa fase deu seu primeiro testemunho com “Los Vínculos” (2018), uma “obra para cinta (o montaje sonoro) basada en las Variaciones Goldberg de J.S. Bach e improvisaciones en piano solo”. Aqui vemos Shocron adentrar outros campos sonoros, desenvolvendo uma arte avant-garde na qual os limites de gênero se dissipam. Mais do que nunca, sua expressão artística se ampliou para além-piano: a voz poética, o corpo, a palavra escrita, o campo imagético e até mesmo um outro instrumento (o violoncelo) se tornaram novos modos de fazer sua arte. Se a improvisação livre segue como via inescapável, esta etapa é devedora de um processo criacional onde os projetos parecem ser mais profundamente planejados, onde as ideias duelam por espaço com a espontaneidade (ou se mesclam entre si). Nesta fase, brotaram: “Algo en un Espacio Vacío” (2021), duo com Pablo Díaz e colaboração da artística plástica Verónica Trigo; “El Camino Sigiloso” (2024), com cordas e voz protagonistas; e este mais recente “Tarot Sonoro”.

Tarot Sonoro: 22 piezas para sintonizar não se trata apenas de um disco solista que você coloca para tocar (claro que pode apenas fazer isso, mas há muito mais coisa em torno dele). É importante ler o texto de apresentação para tentar melhor decifrar essa nova música que nos chega. Possivelmente quem seja iniciado no tarô sinta/absorva/reverbere essa música de uma forma diversa. Como não é meu caso, busquei primeiramente ouvir a música em si, sem pensar nas cartas. Depois, ver a que carta se relacionava cada uma das 22 peças, por meio de seu título – inevitável fazer relações ingênuas, como esperar uma música sombria na faixa “La Muerte” ou algo que emanasse religiosidade em “El Papa”, mas Shocron não seria tão óbvia. Mesmo vendo os nomes de cada peça/carta, o mistério da música segue. E sua hipnótica beleza permanece (pensei que talvez seja uma experiência como a de ouvir os “Etudes Australes”, de John Cage, inspirados nos mapas estelares do Hemisfério Sul; nunca olhei para esses mapas e ouço esta música com interesse há muitos anos).

“(...) hace unos años muy interesada en el tarot me apareció la pregunta acerca de cómo sería una lectura de las cartas ‘sin palabras’ sino, ‘con sonidos’ o músicas. Cómo nos relacionamos con ellas y dejamos que nos atraviesen, nos muestren caminos, nos cierren otros, nos espanten, o nos inviten”, diz Shocron na apresentação do trabalho. “Este tarot sonoro es una prueba de cómo podría ser ese vínculo de las cartas con la música, pudiendo haber infinitas interpretaciones, a veces fuera de nuestro lenguaje verbal.” Ela explica como que da ideia inicial chegou ao álbum: “(...) empecé a hacer algunas pruebas en vivo, haciendo tiradas del Tarot de Marsella y tocando improvisaciones en vivo, con una partitura, a modo de mapa, con algunos disparadores para improvisar. Con el tiempo las músicas fueron tomando forma y empezaron a volverse composiciones”. 

Lendo as palavras de Shocron, parece que adentrar as cartas do tarô tem o poder de ampliar a fruição da obra. Talvez apenas assim seja possível, de fato, alcançar toda sua plenitude expressiva (o que posso dizer é que uma peça como “La Templanza”, por exemplo, tem tanta força em si mesma que é capaz de atravessar nosso corpo com suas letárgicas e melancólicas notas sem que saibamos o que a carta representa). Percorrer a cerca de 1h15 de Tarot Sonoro, com o piano acompanhado aqui e ali por gravações de campo, objetos, sons percussivos e eletrônicos, que ampliam a beleza e a profundidade da música que nos é oferecida, é uma experiência inquietante, hipnótica e, por que não, reveladora (afinal, as cartas de tarô pertencem ao campo do oráculo, do premonitório). Como as cartas do baralho de tarô são embaralhadas e tiradas em ordem aleatória, ouvir este álbum em modo randômico, sem saber qual faixa virá em seguida, talvez configure a forma mais justa de desbravar essa música. Junto ao álbum, editado apenas em formato digital, foi confeccionado um baralho de tarô próprio, com ilustrações da artista chilena Sandra Ureta Marín, que pode ser adquirido pelos ouvintes. Com Tarot Sonoro: 22 piezas para sintonizar, Paula Shocron volta a nos surpreender e encantar, provando uma vez mais que sua música/arte não tem limites.

 


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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)