Ada Rave: o novo sax argentino

Nos últimos tempos, temos visto uma muito bem-vinda leva crescente de mulheres saxofonistas. Da radicalidade da italiana Virginia Genta, passando pela alemã Ingrid Laubrock e a norte-americana Matana Roberts, o número de artistas que têm ajudado a inovar a expressividade do sax não para de crescer. Da Argentina, vem uma nova desbravadora do sax: Ada Rave. Sendo um dos nomes mais ativos da atual cena jazzística portenha, ela tem estado envolvida em interessantes projetos de perfis e intensidades variados, desenvolvendo uma obra com pontos de força e beleza, indo do jazz contemporâneo à improvisação livre.
Ada Rave conversou com o FreeForm, FreeJazz.



Por Fabricio Vieira


FF - Quem é Ada Rave? Como nasceu sua ligação com a música, como surgiu a saxofonista...

"Minha formação é mais errática que formal... Minha vontade de ouvir música vem desde pequena; aos 7 anos, no Natal, pedi de presente um rádio-gravador e meu primeiro contato com a música foi por meio dele, algum cassete infantil e um pouco de rock (The Police, Queen e Pink Floyd)... Cresci, até uns 10 anos, no sul da Argentina, indo de Chubut a Santa Cruz, da cidade ao campo, da praia à montanha. Cheguei em Buenos Aires nos anos 1980 (depois dos 70’s, o melhor momento do rock argentino... García, Spinetta, Los Abuelos, Sumo...) e meu gravador servia para que pudesse escutar tudo o que a democracia colocava nas rádios, adorava ‘zapear’... e depois investigava com os amigos do que se tratava, comprava discos... E assim fui descobrindo bons sons do rock e algo de jazz, Armstrong, e Branford Marsalis junto a seus companheiros tocando com Sting em ‘Bring on theNight’...
"Aí comecei a conhecer outros músicos de jazz e passei a querer tocar sax. Pedi a meu pai um sax tenor e acabei ganhando um aos 13 anos, um ‘Weril’ de estúdio (ele se mudou para o Brasil...). Estudei apenas um ano, mas no colegial comecei a tocar em diversos grupos, de ska, rock, reggae etc. Até que um amigo me deu de presente, quando tinha uns 17 anos, o ‘Coltrane Quartet’ e foi aí que passei de vez para o lado do jazz, e sonhava em ser uma saxofonista de jazz... Mas tive de aguardar uns anos para adquirir um bom instrumento, me tornar independente e começar a estudar com seriedade. Comecei a ter aulas  particulares com Carlos Lastra ao mesmo tempo em que tentava, com muita dificuldade, tocar em uma jam session conduzida por Enrique Norris no Jazz Club Del Passe La Plaza. Estudei uns anos com Lastra, com Rodrigo Domínguez, Norris e freqüentei a Escola de Música Popular de Avellaneda. Em 2010, concluí o curso de jazz do conservatório Manuel de Falla, aberto por Ernesto Jodos em 2005, ao mesmo tempo em que seguia tocando e fazendo projetos... experimentando... tocando com amigos... tocando... tateando... e aprendendo a estudar..."     


FF - E sua relação inicial com o free jazz e a improvisação livre, como desembarcou nesse universo sonoro?

"Creio que nos momentos de contato direto com o instrumento, tocando por tocar... por puro prazer, sem saber muito sobre música, foi aí que se deram meus primeiros encontros com a improvisação. Na época do colegial, com o disco do Coltrane Quartet, tocando junto a todo volume, sem parar, tentando imitá-lo... depois conheci ‘Stellar Regions’ e ‘Ascension’ e Ornette, não entendia o que estavam tocando ali! Continuo a me surpreender com essas gravações, esse pessoal segue sendo incrível para mim! Depois, com o tempo, a gente vai se identificando com coisas que vai escutando, há coisas que te agradam, outras que te fascinam e outras que você sente que são bem-realizadas e belas, mas que não te enchem o coração...
"Quando comecei a tocar nas jams, conheci o Pablo Puntoriero (La Cornetita), que me convidava para participar em algum tema... Assim, além de tentar aprender o estilo bebop, de tentar copiar os grandes nomes do jazz e desvendar sua história, também me atraía todo o mundo dos grandes dos 60’s (a última fase do Coltrane e seus seguidores, Ornette, Don Cherry, Cecyl Taylor, Anthony Braxton e o pessoal de Chicago, além dos músicos eruditos do século XX), tinha o desejo de tocar o que eu sentia. Com Carlos Álvarez e Germán Boco, tentávamos tocar standards, mas também Ornette, e compúnhamos pequenas melodias que eram, na realidade, desculpas para improvisarmos sem forma definida, dentro da linguagem que íamos absorvendo. Também com Paula Shocron e Lulo Isod tentávamos improvisar livremente... Com meu quinteto ‘Proyecto Orgánico Rave’ busquei experimentar com temas nos quais era possível partir de uma forma e retornar ou não etc. Até que, com Augusto Urbini e Pablo Vásquez, nasceu o ‘Martes151’ (vídeo abaixo), esse era nervoso e, vendo até onde chegamos, creio que foi o primeiro grupo realmente free em que toquei, ali tocávamos o mais solto que podíamos, buscávamos criar algo entre o grupo fazendo longos sets na casa do Augusto. É a partir disso tudo que tento desenvolver o que faço."

FF - Você despontou na cena argentina em meados de 2000, em projetos com Carlos Álvarez e Paula Shocron. Como sua música se transformou ao longo dessa década?
              
"Penso que o quê alguém realiza faz parte de um longo desenvolvimento até que sua vida termine, o que vai vivenciando, ‘caminar el camino’, como dizem... Minha curiosidade me leva a ler, ouvir e ver, sobre Arte e história cultural de um modo geral (jazz, rock, contracultura, música clássica, outras culturas e épocas, outras expressões que não sejam ocidentais), acho que isso me ajuda a ir decifrando como quero fazer [as coisas], de que forma posso expressar o que carrego aqui dentro... Uma mudança pode ser sentida, [mas] não vejo as coisas como ‘o que devo tocar’ e sim como ‘o que sinto tocar’, acho que me identifico com uma forma expressionista, mais do que antes... Me identifico muito com os movimentos jazzísticos surgidos nos anos 60’s, com aquele espírito."

FF - Que espaços tem encontrado na Argentina para desenvolver seu trabalho? Há um público e lugares para tocar, que permitam com que se viva apenas da arte que faz?   

"Estão aparecendo movimentos de jazz criativo e moderno em outras cidades: Mar del Plata, Santa Fé e Rosário, são jovens que também tocam em Buenos Aires e têm apostado em criar seus próprios espaços e ensinar em suas cidades de origem. Em Buenos Aires, a maioria dos lugares trabalha com ‘borderaux’, mas a realidade é que nós músicos sobrevivemos dando aulas, tocando em algum evento... Os lugares que contam com espaços na agenda para expressões  mais livres são poucos: Thelonious Club apenas programa jazz; Virasoro Bar, Un Lugar de Ortúzar, Domus Arts, esses são bares ou casas de jazz que abrem suas portas para músicas mais radicais; Una Casa se dedica apenas à música experimental, noise e free por excelência (mas não é permitido tocar muito pesado: é sem bateria/percussão). No meu caso, estou organizando em um centro cultural uma jam session semanal de free jazz/experimental/impro livre, [a proposta é que] a cada segunda-feira [dia dos encontros] haja um grupo novo e tem havido bastante demanda. Em parte, a ideia é a de criar um espaço de encontro e intercâmbio, para que os músicos que têm essa forma de se expressar se conheçam, se agrupem, e tem dado resultados: o público curte as ‘viagens sonoras’, abrem suas percepções, mas vamos ver como a coisa vai andar, são apenas dois meses [de projeto], com noites fantásticas..."  

FF - Seu mais recente trabalho, La Continuidad, apresenta uma versão de Out to Lunch (Dolphy), uma homenagem a Monk, uma citação a Braxton. Quais são suas grandes inspirações no sax? E na música argentina?

"Em relação aos músicos que fizeram com que eu sentisse a necessidade de escutá-los milhares de vezes, sem que me cansasse disso, e com quem busquei aprender a crescer, estão: Coltrane, Shorter, Dexter e Sonny, Ornette, Dolphy, Braxton, a música de Monk e Mingus, e outros mais, mas esses são os primeiros para os quais direcionei meu foco. Na Argentina, Enrique Norris é para mim muito importante, tanto quanto Carlos Lastra e Pablo Puntoriero, sinto que a música deles é sincera e comprometida, que dão o que podem encima do palco, tenho muita admiração por eles, que me ajudaram muito nessa jornada. Ernesto Jodos também é um dos que mais admiro e que esteve e está, de uma forma ou de outra, próximo."



FF - Como se deu a criação de “La Continuidad”? Há temas que compôs sozinha, houve ensaios, o grupo se apresentou ao vivo antes de gravar?

"Após o quinteto ‘Proyecto Orgánico Rave’, montei outro grupo no fim de 2009, com Martín de Lassaletta no baixo e Martín López Grande na bateria, pensei em um trio no qual pudéssemos nos inter-relacionar de forma mais próxima. Eu tinha várias composições e Lassaletta apareceu também com uma composição (El Garca de Noe) que ia ao encontro do projeto e nos reuníamos para improvisar livremente, experimentar ideias. Tocar sempre, sempre buscando locais para tocar. Em um momento em que a sonoridade já estava mais definida chamei o guitarrista Wenchi Lazo, por sua gama de sons e a sujeira que às vezes trás em sua música. O curioso é que na época em que decidi gravar e arrumei uma data em um estúdio, não encontrávamos lugares para tocar ao vivo. Dessa forma, ensaiamos uma vez por semana durante dois ou três meses e entramos em estúdio. Mais do que [dizer que] eu tenha comandado a gravação, foram todos fundamentais no desenvolvimento do que foi gravado e Wenchi, em muitos momentos, acabou por ser o porta-voz das minhas ideias, que eu não sabia ao certo como comunicar aos outros."   

FF - Você está envolvida no momento com diferentes projetos de propostas distintas, como o seu Cuarteto, Los Improvisadores Graficos e Resistencia Chaco. Como tem sido conciliar a atuação nesses grupos?

"Gosto de tocar... e é verdade que cada coisa é diferente, pois  quando mudam os parceiros as respostas ao tocar se alteram também. Esses três projetos são distintos entre si, é sempre um desafio, mas nem todos funcionam ao mesmo tempo, há meses em que se envolve mais com um deles, e meses com os outros. De qualquer forma, sempre estou me reunindo com alguém para tocar impro ou jazz e o que vai aparecendo é bem-vindo... o mais difícil é acertar as agendas..."

FF - Cinco álbuns fundamentais em sua discoteca.

"Que difícil!!



1. Out to Lunch (Eric Dolphy)
2. Ascension (John Coltrane)
3. At the Golden Circle (Ornette Coleman, vol. 1 e 2)
4. Momentum Space (Dewey Redman, Cecil Taylor, Elvin Jones)
5. Five Pieces (Anthony Braxton)



FF - Obrigado pela entrevista e espero em breve vê-la tocando no Brasil.

"Seria um grande prazer para mim. Adoraria. Obrigada."