1969: Cecil Taylor encontra Sam Rivers


ÁLBUNS HISTÓRICOS
O pianista Cecil Taylor reorganizou sua banda em 1969, trazendo Sam Rivers como segundo saxofonista, o que resultou em um dos momentos mais marcantes do free jazz...

 

Por Fabricio Vieira

Em 1969, Cecil Taylor havia perdido um membro constante de seu grupo nos últimos anos, quando o baixista Alan Silva se radicou na França. Para completar seu Unit, o pianista acabou fazendo uma escolha que mudaria em muito o som da banda: ao invés de encontrar outro contrabaixista, ele convocou o saxofonista Sam Rivers para o lugar. Assim, o quarteto começou a se apresentar em 1969 com uma formação de piano, bateria (Andrew Cyrille) e dois saxes (o altista Jimmy Lyons e o tenorista Sam Rivers). 

Photo: Christian Rose
A primeira performance com esta nova formação aconteceu em 29 de janeiro daquele ano, na Universidade de Washington. Após algumas apresentações aqui e ali nos Estados Unidos, surgiria a primeira grande agenda para essa banda no mês de junho, quando embarcam para a França, convidados para uma residência de quase dois meses na Fondation Maeght, um centro cultural privado localizado em St. Paul de Vence, na Riviera. No segundo semestre, o grupo voltaria à Europa para uma extensa agenda de concertos em diferentes países. A viagem incluía a participação em uma edição itinerante do Newport Jazz Festival no velho continente (que contou também com Miles Davis e Duke Ellington). Assim, entre outubro e novembro, eles tocaram em Milão, Bourdeaux, Londres (incluindo o clássico palco do Ronnie Scott’s Club), Paris, Copenhague, Estocolmo, Berlim e Roterdã. Se dessa tour não saíram discos oficiais (alguns bootlegs circulam por aí), restaram históricos registros em vídeo, a destacar uma incrível apresentação em Paris, na Salle Pleyel, no dia 3 de novembro de 1969 (curta o vídeo abaixo). Após este intenso período, as atividades do quarteto diminuiriam consideravelmente no ano seguinte, sendo documentadas apenas algumas apresentações em Nova York no primeiro bimestre. Rivers tocaria pela última vez com Taylor em maio de 1971.

Se o Cecil Taylor Unit de 1969 foi um grupo de vida efêmera, sua música única é um marco na história do free jazz. Infelizmente eles não deixaram registros de estúdio, mas um álbum oficial ficou de testemunho do enérgico e pulsante trabalho que desenvolveram, imortalizando o concerto que fizeram no dia 29 de julho de 1969 na Fondation Maeght. O álbum triplo foi lançado pela primeira vez em 1971 pelo selo francês Shandar, com o título Nuits De La Fondation Maeght (em versão box com 3 LPs e também em vinis separados, como Vol.1/2/3. Mas é um pecado ter apenas um desses volumes, já que se trata de um longo único show!). Apenas em 1977 apareceria uma edição nos EUA, pelo selo Prestige, com outro título, mas o mesmo conteúdo: The Great Concert Of Cecil Taylor (em box com 3 LPs). Oficialmente, o material nunca foi publicado em CD (uma versão não autorizada circulou pela Europa em CD nos anos 90; segundo relatos, o som é pior do que o do vinil, lembremos que é uma versão pirata). E ao que parece, também está fora das plataformas de streaming – um crime restringir o alcance dessa música incrível!

The Great Concert Of Cecil Taylor traz cerca de 1h50 de música, dividida em seis partes (uma em cada face dos 3 LPs). Chamada apenas de “Second Act of A”, a peça rola ininterruptamente pelas 5 partes iniciais, sendo dividida por causa das limitações do disco de vinil – somente a “Part 6”, o encore, é de fato separada do restante. No dia anterior à esta gravação, o grupo tocou no mesmo espaço, em uma apresentação de características similares, com a peça central sendo chamada de “Act of A.C.”, dividida em duas partes, “Was Words” e “Ethiopie” (nesta, Rivers e Lyons tocaram flauta*, em uma das raríssimas vezes em que o fiel escudeiro de Taylor deixou o sax alto de lado. Mas não há gravação disso, apenas relatos).

Sam Rivers, então com 45 anos, estava de fato adentrando o mundo do free jazz sem amarras exatamente nesse período. “I think being with [Taylor’s] group sent me to another plateau. We rehearsed eight hours per day. Constant rehearsing. I had never done that before. That got me to a place where I was subconscious when I got to my fifteenth solo chorus: you know with Cecil one solo can last forty-five minutes to an hour”, disse Rivers, em entrevista em 1978 para o Washington Post. E temos sorte de este grupo ter sido registrado, já que esta foi uma fase de poucos gravações oficiais de Taylor – e o que essa banda faz aqui é realmente de valor histórico e estético inestimáveis. Esta música marca a entrada em uma nova etapa na trajetória do pianista, demarcando uma estética que seria plenamente desenvolvida na década de 1970, registrada em álbuns essenciais como “Dark To Themselves” (1976), onde vemos a improvisação coletiva como elemento crucial, com as ideias se desenvolvendo por meio de peças muito extensas. 

Rivers trazia uma coloração muito particular à banda, focado em densas linhas no tenor, e se exibindo também ao sax soprano, gestando uma dobradinha com Lyons irretocável em seus contrastes – Lyons, um free jazzista que jamais abandonou sua inspiração bop e certo lirismo. Nuits De La Fondation Maeght começa algo lentamente, ganhando maior impulso energético quando chegamos às partes 2 e 3, com os dois saxes em elevadíssima voltagem – essas partes são concluídas com um duo de piano e bateria, formato que muito Taylor exploraria no futuro. Na “Part 4”, há uma virada de tom, com Rivers no sax soprano e momentos em que Taylor, sutilmente pingando notas nos teclados, cantarola uma recitação silabar, sinalizadora de suas futuras declamações poéticas. Rivers retoma o tenor para os dois movimentos finais, sendo a Part 5 especialmente mágica, com as linhas em uníssono dos saxes criando temas de repetição inebriante, com o piano ao fundo em labirintos hipnóticos, enquanto Cyrille cria fraturadas camadas no tom perfeito para trazer densidade sem atropelar os parceiros. Que banda, que música! 

O fim da década de 1960 foi marcado por um sopro de explosão no free jazz, ecoando por diversos cantos do mundo, com o Japão começando a deixar sua voz registrada, a Europa em ebulição criativa e o Art Ensemble of Chicago iniciando sua história. Cecil Taylor mostra com este grupo que continuava como um farol para a música livre e criativa.  

*In: Phil Freeman, “In the Brewing Luminous: The Life & Music of Cecil Taylor”



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*quem assina:

Fabricio Vieira é jornalista e fez Mestrado em Literatura e Crítica Literária. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; foi ainda correspondente do jornal em Buenos Aires. Colaborou também com publicações como Entre Livros e Jazz.pt, de Lisboa. Nos últimos anos, tem escrito sobre música e literatura para o Valor Econômico. É autor de liner notes para os álbuns “Sustain and Run”, de Roscoe Mitchell (Selo Sesc), “The Hour of the Star”, de Ivo Perelman (Leo Records), e “Live in Nuremberg”, de Perelman e Matthew Shipp (SMP Records)