Mats Gustafsson: "O público precisa abrir a mente"



ENTREVISTA Essa conversa que tive há poucos dias com Mats Gustafsson fica como aperitivo ao que teremos a oportunidade e o prazer de apreciar daqui a um mês. O saxofonista sueco vem pela primeira vez ao país com o trio Fire!...






Por Fabricio Vieira



FF - No próximo mês você e o Fire! estarão no Brasil. Fale um pouco sobre o som que fazem, para quem ainda não os conhece.

Mats Gustafsson: "Penso que isso é um problema. Eu não gosto de classificar as coisas, de rotular minha música, isso limita a experiência dos ouvintes. E isso vale para todas as tradições ou expressões artísticas, literatura, arte, dança, teatro e outros. Ou você gosta da música ou não, o público que decida. Nós tocamos “Fire! music”, é isso.
Podem esperar por uma música “Fire!”... uma música que mude seus focos e perspectivas, algo novo que abra suas mentes. Nós realmente não gostamos de rotular nossa música. O público precisa abrir a mente, decidir se gosta ou não [do que ouve]. Mas isso é simples... apenas abram seus ouvidos e mentes e nós faremos o resto."

FF - Sendo a primeira vez que vem ao país, que referências carrega, musicais ou não, daqui?
"É a primeira vez que vamos para a América do Sul. Estamos realmente empolgados com isso. E também para desvendar coisas além da cena musical, a cultura e as pessoas, para caçar alguns vinis e nos interarmos da cultura que muito ouvimos falar nesses anos todos. Eu sou um grande fã e colecionador de música brasileira... e não estou falando da ‘coisa free’ (mas é claro que conheço figuras como o Márcio Mattos... nós chegamos a tocar juntos na década de 1990), mas de bossa nova e tropicalismo. Eu sou um grande fã de Gal Costa, Caetano Veloso, Tom Zé, João Gilberto, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Milton Nascimento... música que realmente abriu meus ouvidos e mente anos atrás... essa é uma música muito, muito única e especial, que realmente mexeu comigo. Eu realmente espero encontrar alguns belos vinis de 12’’ e 7’’ nessa viagem ao Brasil e também descobrir algumas coisas novas. Então, caro público, tragam, por favor, belos e raros LPs para o concerto e poderemos fazer alguns negócios..."               .

FF - Nenhum de seus discos já foi lançado no Brasil. Mesmo assim, você tem vários fãs por aqui, que acompanham seu som via Internet. Qual a relevância da Internet para a música de expressão mais radical?
"Penso que vivemos em um tempo muito interessante, mas também muito violento e estúpido. Há muitos níveis e perspectivas a se considerar... Mas é claro que a Internet tem sido positiva para a música. As pessoas facilmente podem nos encontrar e à nossa música. Isso é vantajoso pra nós e para o público. A parte negativa é que quase não existem filtros na internet... mas essa é uma outra questão (rs)!
"De qualquer forma, minhas gravações estão disponíveis em lojas e downloads em todo o mundo. Todos podem encontrar meus títulos em lojas virtuais. Sempre há maneiras de se chegar à música hoje em dia. E isso é fantástico! As coisas mudaram drasticamente. Tenho tocado em muitos países e lugares novos nos últimos anos. Neste inverno, por exemplo, passei por Austrália, Nova Zelândia, Etiópia, muitos lugares do leste europeu (Polônia, Ucrânia, Hungria etc etc) e os encontros com novos públicos são de grande importância para mim e o Fire! E temos visto um jovem e variado público, o que é muito estimulante e inspirador!"

FF - Sua ligação com o punk rock e suas colaborações com Thurston Moore trouxeram um público novo até sua música. Qual sua conexão com o rock hoje?
"Isso é muito profundo e sincero, minhas raízes. Eu comecei em uma banda punk na adolescência, 14 anos...  Agora faço algo diferente, mas espero que a dedicação e energia sejam as mesmas. Ouço muito ‘creative rock music’, claro. Tanto o som que meus amigos e colegas fazem, [quanto] o que encontro em vinil. Há sempre coisas para procurar e explorar. A busca é interminável! Eu não me importo se você vem da cena rock ou do jazz... ou do erudito contemporâneo ou do noise... o que conta é o que você pode fazer no palco. Como se comunica. Como improvisa, a energia que gera ao seu redor.
Eu sempre estou à procura de novas colaborações e muitas dessas pessoas realmente vêm do cenário rock. Há uma forte cena em atividade na Europa, que está realmente apavorando."

FF - Você tem tocado com muitos parceiros em muitos projetos de perfis distintos. A crítica te enche por essa multiplicidade?
"Foda-se a crítica. Eu faço o que faço. O público decide se gosta ou não. O que é melhor: óleo ou manteiga? Falando sério: enquanto você tocar com sua própria voz... porra, nunca faça concessões em relação a isso. Daí não vejo problemas. Mas se quiser ajustar sua voz a toda nova onda... daí você apenas estará se prostituindo..."

FF - Como encarar o free jazz/free improv atualmente? Os jovens se interessam por esse tipo de som?
"Esteve sempre morto? Esteve sempre vivo? Quem sabe. Como eu disse, não gosto de colocar rótulos em música e arte, especialmente nos dias atuais... Há apenas uma grande variedade de ‘creative music’  hoje, tanto quanto me interessa. E isso vem de todas as direções possíveis... noise, eletrônico, dub, punk, erudito contemporâneo, metal, world music... o que antes vinha prioritariamente do jazz agora desponta de todas as partes. Os jovens realmente estão sedentos por ‘creative music’, que comunique algo, que esteja distante das merdas que vêm da TV e da mídia nestes tempos. Os jovens querem ser sacudidos. A cena está bastante diferente do que era uma década atrás. Imagino que isso é muito importante e promissor para o futuro. A ‘creative music’ e as artes como um todo abrem as mentes, os horizontes ... apontam novas perspectivas de vida e artísticas. Também exibe e expõem diferentes aspectos ideológicos e filosóficos. E isso pode realmente significar mudanças para os indivíduos e também, em uma perspectiva mais ampla, para a sociedade."

FF - O Brasil tem recebido de forma mais intensa grandes nomes da free music em anos recentes. Acha que tem havido uma diversificação maior na agenda dos músicos?
"Realmente acredito que todos os países, uns mais outros menos, têm possibilidades [de criar], além de terem apetite por ‘creative music’. Há pequenas cenas em todo o mundo. Eu tenho pessoalmente presenciado cenas em vários extremos do mundo: Islândia, Lapônia, Tasmânia, Etiópia, Índia, Coreia etc etc... Há espaço para esse tipo de música em todos os lugares. Tudo é possível. Você apenas precisa dar  o pontapé inicial. E é claro que um caminho interessante é o de convidar músicos ou artistas de outros campos para colaborar. Eu fiz isso na Suécia há anos atrás, quando comecei. Você tem que ser ativo e realmente FAZER ALGO! Para assim realizar suas coisas. Trata-se da velha escola DIY (‘Do It Yourself’)… Sempre foi assim. É um método muito útil, aprende-se muito com isso. Olhe para Sun Ra, Brötzmann, Derek Bailey, John Zorn etc etc. Eles fizeram tudo por eles mesmos."

FF - Archie Shepp irá tocar no mesmo festival em que o Fire!, alguns dias depois. O quê pode falar sobre Mr. Shepp?
"Bem, o que dizer? Ele é um dos fundadores da ‘creative music’. E amo sua forma de tocar. Uma voz única e um dos meus favoritos. Ele é responsável por alguns dos momentos mais incendiários da história da música gravada. Cara... se você ouvir ‘The Way Ahead’, ‘Fire Music’, ‘Blasé’. Sua música é vida! Meu amigo Joe McPhee o ouviu em um concerto solo no outono passado que foi incrível... ele realmente ainda arregaça. Eu o vi algumas vezes, sempre muito bom!
O engraçado é que apenas tenho uma foto original dele, assinada por Val Vilmer... com um jovem Mr. Shepp sentado em seu estúdio em Nova York em 1967 .... foto incrível... fico feliz de olhar para ela.
A música dele realmente me faz mais feliz!"

FF - Você começou com o sax tenor? De quem traz marcas em sua trajetória?
"Sou influenciado por gente que realmente apavora, na música, na arte, na vida...eles são muitos em todos esses anos, ha ha. Nunca tive ninguém dizendo o que deveria fazer. Mas é claro que algumas pessoas [me disseram] muito... Eu não seria nada sem Bengt "Frippe" Nordström, Peter Brötzmann, Raymond Strid, Derek Bailey e Paul Lovens. Eles me fizeram olhar na direção certa na hora certa. As influências nos estão rondando o tempo todo... apenas precisamos estar atentos para ver/ouvir/sentir isso... Estamos cercados de influências, o tempo todo. O tempo todo.
Eu comecei tocando flauta... depois mudei para um ‘Fender Rhodes fuzz  distorted’... e, posteriormente, o sax tenor. Hoje luto com meu ‘slide sax’ (e alguns efeitos eletrônicos)... é muito divertido lutar com essa pequena fera!"

FF - Quais os discos que tem escutado atualmente?
"Música incendiária de qualquer espécie. Realmente... mas apenas em vinil... ha ha! Nos últimos dias tenho ouvido muito Getatchew Mekuria, Joseph Spence, Henry Purcell, PJ Harvey, Shihab Sahib, Marhaug Lasse, Andre Williams e The Cramps... uma selvagem variedade... mas só porrada!"
 
FF - O que faz um bom improvisador?

"Boa comida, boa bebida e bons discos para ouvir e curtir! (e grandes ouvidos). Sério... é preciso uma vida inteira apenas para chegar perto da resposta... não há uma resposta simples... e talvez isso seja bom...”



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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor português António Lobo Antunes. Escreve sobre jazz para a Folha de S.Paulo; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires.